segunda-feira, agosto 09, 2010

PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO

Pessoal, mais uma vez coloco aqui o texto que Monteiro Lobato escreveu a respeito da exposição da Anita Malfatti. Gostaria de discutir esse texto com você. Saber o que concordam ou discordam das ideias de Lobato...


"A Boba", Anita Malfatti (1915/16)
MAC USP


PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO
Monteiro Lobato
Estado de São Paulo, 20/12/1917

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêm as coisas e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.
Quem trilha esta senda, se tem gênio é Praxiteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredouros.
A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora se dêem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranóia e a mistificação.
De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios.
A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.
Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude nem do clima.
As medidas da proporção e do equilíbrio na forma ou na cor decorrem do que chamamos sentir. Quando as coisas do mundo externo se transformam em impressões cerebrais, “sentimos”. Para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em desarranjo por virtude de algum grave destempero.
Enquanto a percepção sensorial se fizer no homem normalmente, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato; e é falsa a “interpretação” que o bichano fizer do totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia.
Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui umas tantas qualidades inatas, das mais fecundas na construção duma sólida individualidade artística.
Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e pôs todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador.
A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais sugestivas.
Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o mistificaram grosseiramente.
Outros, certos críticos, sobretudo, aproveitam a vasa para “épater le bourgeois” (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcedências sublimes duma Estética Superior.
No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É mister que o público se ria de ambos.
“Arte moderna”: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira.
Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso virtuose do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão.
Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da “ponta-seca”, que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.
Na exposição Malfatti figura, ainda, como justificativa da sua escola, o trabalho de um “mestre” americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque o diz a nota explicativa) uma figura em movimento. Ali está entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem prega: eu sou o ideal, sou a obra prima; julgue o público do resto, tomando-me a mim como ponto de referência.
Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos, ou dos pés, fechou os olhos e fê-lo passear pela tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente igual.
Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha à cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando um quadro...
A coisa fantasmagórica disso resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola futurista, e proclamada pelos mistificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender.
Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram – e já havia pretendentes à compra da maravilha quando o truque foi desmascarado.
A pintura da sra. Malfatti não é futurista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, queremos crer que tende para isso como para um ideal supremo.
Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscadas desta classificação, como insignes cavalgaduras cortes inteiras de mestres imortais, de Leonardo a Rodin, de Velazquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice versa. Porque é de todo impossível dar o nome de obra d’arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a “Manhã de Setembro” de Chabas e o carvão cubista do sr. Bolynson.
Não fosse profunda a simpatia que nos inspira o belo talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis. Como já deve ter ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética, há de irritá-la como descortês impertinência a voz sincera que vem quebrar a harmonia do coro de lisonjas.
Entretanto, se refletir um bocado verá que a lisonja mata e a sinceridade salva.
O verdadeiro amigo de um pintor não é aquele que o entontece de louvores; sim, o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás.
Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres artistas. Essa é a razão de as cumularem de amabilidades sempre que elas pedem opinião.
Tal cavalheirismo é falso; e sobre falso nocivo. Quantos talentos de primeira água não transviou, não arrastou por maus caminhos, o elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti apenas a “moça prendada que pinta”, como as há por aí às centenas, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia-dúzia desses adjetivos bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.
Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é ser tomada a sério e receber a respeito de sua arte uma opinião sinceríssima – e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público não idiota, dos críticos não cretinos, dos amadores normais, dos seus colegas de cabeça não virada – e até dos seus apologistas.
Dos seus apologistas, sim, dona Malfatti, porque eles pensam deste modo... por trás.

3 comentários:

João Paulo N. Janeiro disse...

Não sei absolutamente nada de Arte, mas lá vai meu comentário...

Concordo com Monteiro Lobato ao dizer que a Arte pode ser interpretada e criada até mesmo nas paredes dos manicômios ["(...) nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses;"], pois a Arte se manifesta em tudo inclusive em enigmas, em símbolos sem sentido para alguns, mas que possuem sim um significado porque cada olho o analisa de uma forma diferente.
Também concordo com Lobato quando diz que a autora possui independência e originalidade e misturando isso ao "(...)futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti(...)" Forma-se uma caricatura que, como o própio autor diz, desnorteia a ideia. Ou seja, as teorias da Arte Moderna misturadas com o toque de Anita Malfatti faz com que o quadro vá além das interpretações ingênuas de espectadores ordinários, como eu :P. Toda a arte contida nesse quadro só pode ser observada e interpretada por aqueles que possuem olhos para vê-la e gosto para senti-la.

Taciana disse...

Olá João Paulo. Muito bom seu comentário. Bastante pertinente. Obrigada pela visita! Vc pode não ser um entendedor de arte, como mesmo disse, mas o que escreveu mostra que tem sensibilidade para buscar crescimento estético. Como educadora fico muito feliz com posturas do tipo da sua.

duende:) disse...

Querida Taci - ahn... posso chamá-la assim, não?

É que sempre me dá tanta saudade de suas aulas. Mesmo.
E outro dia li isso em algum lugar e me lembrou você! Espero que goste.

"I think everything in life is ART.
What you do.
How you dress.
The way you love someone, and how you talk.
Your smile and your personality.
What you believe in, and all your dreams.
The way you drink your tea.
How you decorate your home.
Or party.
Your grocery list.
The food you make.
How your writing looks.
And the way you feel.
LIFE IS ART."

(ah! Só para constar, meu nome é Laís e estudava em Valinhos até ano passado.)