segunda-feira, maio 18, 2009

PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO


PARANÓIA OU MISTIFICAÇÃO
Monteiro Lobato
Estado de São Paulo, 20/12/1917

Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêm as coisas e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.
Quem trilha esta senda, se tem gênio é Praxiteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredouros.
A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora se dêem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranóia e a mistificação.
De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios.
A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.
Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude nem do clima.
As medidas da proporção e do equilíbrio na forma ou na cor decorrem do que chamamos sentir. Quando as coisas do mundo externo se transformam em impressões cerebrais, “sentimos”. Para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em desarranjo por virtude de algum grave destempero.
Enquanto a percepção sensorial se fizer no homem normalmente, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato; e é falsa a “interpretação” que o bichano fizer do totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia.
Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui umas tantas qualidades inatas, das mais fecundas na construção duma sólida individualidade artística.
Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e pôs todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador.
A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais sugestivas.
Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o mistificaram grosseiramente.
Outros, certos críticos, sobretudo, aproveitam a vasa para “épater le bourgeois” (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcedências sublimes duma Estética Superior.
No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É mister que o público se ria de ambos.
“Arte moderna”: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira.
Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso virtuose do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão.
Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da “ponta-seca”, que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.
Na exposição Malfatti figura, ainda, como justificativa da sua escola, o trabalho de um “mestre” americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque o diz a nota explicativa) uma figura em movimento. Ali está entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem prega: eu sou o ideal, sou a obra prima; julgue o público do resto, tomando-me a mim como ponto de referência.
Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos, ou dos pés, fechou os olhos e fê-lo passear pela tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente igual.
Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha à cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando um quadro...
A coisa fantasmagórica disso resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola futurista, e proclamada pelos mistificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender.
Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram – e já havia pretendentes à compra da maravilha quando o truque foi desmascarado.
A pintura da sra. Malfatti não é futurista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, queremos crer que tende para isso como para um ideal supremo.
Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscadas desta classificação, como insignes cavalgaduras cortes inteiras de mestres imortais, de Leonardo a Rodin, de Velazquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice versa. Porque é de todo impossível dar o nome de obra d’arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a “Manhã de Setembro” de Chabas e o carvão cubista do sr. Bolynson.
Não fosse profunda a simpatia que nos inspira o belo talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis. Como já deve ter ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética, há de irritá-la como descortês impertinência a voz sincera que vem quebrar a harmonia do coro de lisonjas.
Entretanto, se refletir um bocado verá que a lisonja mata e a sinceridade salva.
O verdadeiro amigo de um pintor não é aquele que o entontece de louvores; sim, o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás.
Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres artistas. Essa é a razão de as cumularem de amabilidades sempre que elas pedem opinião.
Tal cavalheirismo é falso; e sobre falso nocivo. Quantos talentos de primeira água não transviou, não arrastou por maus caminhos, o elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na Sra. Malfatti apenas a “moça prendada que pinta”, como as há por aí às centenas, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia-dúzia desses adjetivos bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.
Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é ser tomada a sério e receber a respeito de sua arte uma opinião sinceríssima – e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público não idiota, dos críticos não cretinos, dos amadores normais, dos seus colegas de cabeça não virada – e até dos seus apologistas.
Dos seus apologistas, sim, dona Malfatti, porque eles pensam deste modo... por trás.
OBS.: Meus queridos... assim que possível este texto estará na área exclusiva de vocês no site do colégio. Quem já quiser adiantar e pegá-lo daqui, ótimo!!!
Dá um "ctrl c" e "ctrl v" e coloca num documento de "word" que tá valendo! hehehehehehehehe
Abração a todos!

6 comentários:

Saboya disse...

pra mim é muito irônico ele falar que a arte seguindo "as leis" da época era espontâneo, e que seguindo as vanguardas modernistas era forçado. pff :P. mas é claro, levando em conta que isso foi a muito tempo atrás.

Anônimo disse...

Professora, qual foi a reação da Anita ao ler esse artigo? Ela não respondeu à crítica?

Anônimo disse...

Agora a gente sabe por que o Monteiro Lobato foi escritor e não pintor.
De certa forma, o texto é bom. Podem criticar o quanto quiserem mas admitam, mostra algo sincero. O Monteiro conseguiu formar uma opinião forte e defendê-la até o fim. E no fundo ele até nem critica tanto a Anita em si, ele mostra seus cumprimentos ao seu talento como pintora e apenas não concorda com o seu estilo. Inclusive, ele salienta no texto seu respeito pela pintora que o faz levá-la a sério.
Compreendam a coisa mais importante: a habilidade dele é escrever e opinar e a dela pintar. Ponto.
E, se ninguém criticar, de certa forma a obra nunca melhora.
Além disso, não podemos julgar a nossa opnião mais correta do que a dele. E nem adianta mencionar a época ou se desculpar pelo anacronismo, pois a opinião sobre conceito de arte - academicismo, artes vanguardistas ou ambos - é considerada pessoal independetemente do período em que se vive.
Apenas para igualar os argumentos: o autor pode criticar mas, humilhar e desvalorizar as 'escolas rebeldes' chegar ao desrespeito. Total apelação.
Parem de se divertir apenas criticando críticos. É fácil demais.

Anônimo disse...

Creio que Monteiro, enche Malfatti de elogios para disfarçar o seu grande desprezo por sua obra. Admitir que a pessoa é boa pintora, ao mesmo tempo que diz que sua obra nunca poderá ser comparada aos grandes mestres academicistas é a mais pura hipocrisia, ou talvez uma ironia bem disfarçada. Monteiro não tem pleno conhecimento dos argumentos que usa para criticar Anita, isso, com certeza, é o que mais incomoda. Muito de seus argumentos são maus sustentados, como se ele dissesse: a maçã caiu da árvore, porque a maçã caiu da árvore. Não busca nada além de suas crenças para justificar o porquê da desaprovação da obra de Anita Malfatti. Um conservador que quis mostrar que seu ponto de vista era o melhor(não que exista tal coisa), mas não se preocupou em explicar por que é melhor; O meu é melhor e pronto - totalmente infantil. Não chego a outra conclusão que não seja que Monteiro Lobato deveria permanecer em seu lugar como escritor do Sítio do Pica-pau Amarelo e não crítico de inovadores modernistas. Beijoos.

Anônimo disse...

Aos defensores do modernismo e essas coisinhas novas e atuais, por favor, digam somente um nome, um artista ou um escritor que possa ser comparada com um artista clássico grego. Um só, que possa, assim como Sófocles ou Homero, passear pela eternidade das ideias.

Esses movimentos artísticos modernos se perderam exaltando o homem, que é e sempre fora imperfeito. E só alcança algo sublime quando tenta chegar próximo da divindade - foi assim em TODAS as grandes civilizações, que também se perderam quando viraram as costas para este postulado afim de exaltar o próprio umbigo.

Destituiu-se a razão para em seu lugar estabelecer a vontade. Isso faz com que a verdade seja relativizada, negando-lhe um caráter de absoluto. É incrível ter que insistir no fato de que existe a verdade absoluta, caso contrário eu teria que negar (ou relativizar) que estou eu aqui neste momento a escrever nessa caixa de comentários. Ou mesmo que exista este blog. Não saber distinguir o que é real do que é ilusão, mistificação é paranóia. Ou melhor, segundo os guias de psicologia, são indícios de esquizofrenia.

O texto do Lobato é sério e auto-explicativo. O que faz alguém nega-lo é pura apologia de ideologias que afundaram (e ainda afundam) o homem no lamaçal do barbarismo.

Anônimo disse...

Monteiro Lobato nao deveria ter escrito isso! Agora tem mais coisa pra estudar... Se ele tivesse ficado quieto eu n precisaria estar estudando isso!